A seca, tudo transforma. De tudo exige
um novo ritmo...
Surpreendente constatar que Pe. Fernão Cardim
relatava, nos idos tempos jesuíticos, a presença dela no nordeste dessas
paragens. Pela ótica distanciada de uma “literatura de viagem”, o missionário
catequista dedicou-a pouco mais de um parágrafo do seu Tratado da Terra e Gente do Brasil. Em rápidas linhas, descreve o
nomadismo dos nativos dessa geografia, no caso, aqueles a quem rapidamente
rotulou de “índios”. Para eles, os índios, a conhecida escassez de água evocava
o movimento, obrigava-os a buscarem estratégias, organizarem-se, unirem-se de
alguma maneira para solidificar a certeza e perenidade ante a grandiosidade do
temporário.
Capturada pela
arte, protagonizou Os Sertões (1902), A Bagaceira (1928), O Quinze (1930),
Vidas Secas (1938), Seara Vermelha (1946), Cangaceiros... Muitos e muitas narrativas
que dedilharam, num rosário interminável de descrições, os flagelos trazidos na
bagagem da incômoda senhora para serem distribuídos, a contragosto, aos seus
insatisfeitos e desavisados anfitriões”. Subgrupo da vertente regionalista,
fomentada pelo Manifesto de 1926, é uma “ literatura da seca” , segundo Tristão
de Athayde, capaz não só de refratar, mas também de produzir um imaginário
coletivo, apto em associá-la à aridez, à infertilidade disseminada em seu mais
alto grau. Esse arquétipo da seca,
muitas vezes obscurece seu poder: a mobilidade criativa, a capacidade de
regeneração e de fortalecimento a quem dela recebe a enfadonha visita.
Lidos tantos textos, sorvida tanta poesia, penso na
bagagem lírica, no conteúdo latente a esse “acontecimento” de regularidade quase
matemática e na sua interferência no cotidiano local...
Nunca vivi a seca tão de perto, mas posso senti-la mestra,
professora, posto que as suas lições ecoem aos meus ouvidos, tornem-se visíveis
aos meus olhos, palpáveis ao toque de minhas mãos, sorrateira ao meu olfato e,
sobretudo, perceptíveis ao meu paladar.
Da seca, aprendi o silêncio das árvores órfãos de
ornamentos e orquestras; o sussurro do vento soltando a terra devagarinho, numa
maldade carnavalesca de pó, feito confete, sobre os telhados e biqueiras boquiabertos
de espanto.
Da seca, aprendi o cinza da montanha, a nudez das
pedras mortas e “cadavericamente” mumificadas. Aprendi a tristeza da grama
desmaiada de fome, do jardim em repouso e sem festa, a limpeza triunfante de um
céu, cuja incandescente assepsia nos faz pensar: “não há um pingo de branco a
sujar o imaculado do azul”, não há possibilidade...
Da seca, aprendi a dureza da terra, a tatuagem da ruga
esculpida na paciência do sol e do tempo, gêmeos de “morte e de vida, severinas”.
Aprendi o pesado da água, a rispidez e a economia do toque, o valor do
hidratante... Ah! O hidratante! O “hidra”/água feito creme, corrompida de sua
identidade primeva.
Com ela, grande professora, aprendi o gosto amargo das
coisas mais simples carentes de água. O murchar das hortaliças, a tristeza da magra
feira, o soluço decepcionado de tudo que é irrigado pelas mãos econômicas do
homem. Percebi, "(...) Uma ressurreição de
cemitérios antigos - esqueletos redivivos, com o aspecto e o fedor das covas
podres.
(...)", além do cheiro triunfante da queimada fabricada pela
ignorância e cozida às pressas na fornalha do masculino fogo.
Da seca, em sua gramática imutável, compreendi as
regras. A construção intercalada que tem o poder de modificar grandes períodos,
um vocabulário novo que faz do “pipas” eternos voadores em busca de água para
mitigar a sede de quem tem.
A matemática da seca bem ensina o preço da vida, a
exatidão da dívida. Ensina a subtração dos bens, a soma dos insucessos, a
multiplicação da esperança, a divisão de tudo em duas realidades: com água, sem
água. Ensina ainda a economia dos contatos, a geometria das distâncias percorridas
e desnuda as formas dos açudes e barragens: círculos e esquadros grávidos de
vazio.
A biologia da seca nos ajuda a perceber a alegria
ensandecida dos pardais, a insistência rotineira dos lagartos, a audácia dos insetos
teimosos que de nós se aproximam em diálogo repleto de incomodada
intermitência. É ela, impávida matrona, que desestabiliza os gêneros fazendo
das Luzias homens, das mulheres, macho... Dos homens, cabeleiras. Tudo desorganiza em
harmoniosa celebração do impulso.
A filosofia da
seca, boa professora, desvela a cada um a certeza de que o saber não equivale à
ação, que o conhecimento não garante melhoria, que as injustiças se perpetuam
pela tirania dos aproveitadores, que a ética e a moral ficam obscurecidas ante
a perplexidade da morte desposada pela fome. Mas ensina a solidariedade de comungar
das mesmas sensações...
A liturgia da seca ministra a crença nas adivinhas, a
espera no numinoso, o associar do tempo aos santos e aos santos, a chave das
comportas aquíferas do infinito. Esse relicário das secas nos diz da nossa
congênita pequenez.
Mais que tudo, a grande mestra nos diz da secura humana,
do semiárido dos sentimentos, da carência de unidade na construção de uma
dinâmica capaz de, como os “índios”, estabelecer um movimento produtivo de
convivência com a seca “de água” rumo ao combate à seca de valores, pior crise.
Bom seria aprender a conviver com ela sugando cada
gota de seus ensinamentos e transformando suas lições em solidariedade, pois
durante a chegada dessa dama exigente somos convocados a nos doar mais e mais
em prol do outro, aprendemos a verdadeira noção da sustentabilidade somente adquirida
quando se respeita o outro, quando se descobre no outro o nosso próximo.
A seca, por fim, tem o dom de me conduzir ao “alumbramento”
da personagem Gabriela, criada por Jorge Amado. A simples retirante coberta
pelo pó da jornada migratória que, ao se deparar com as fontes cristalinas de
Ilhéus, deixa de lado toda e qualquer convenção e se permite banhar e desfrutar
de cada gota libidinosa das carícias aquosas.
Oculta pela crosta, pelo agarrar da poeira impregnada
nos poros e pelos, uma mulher tocada pela leveza do nomadismo, porta-voz da
mudança, avessa ao sedentarismo, “divisora de águas”... Repleta de possíveis.
Penso ser isto o que a seca pode nos ensinar e nos
trazer de melhor: essa certeza de que, por baixo de tantos sentimentos
mesquinhos que contaminam e nos sufocam, por baixo de uma pele coberta por uma espessa
poeira repleta de egoísmos e
preconceitos, subjaz uma centelha do divino pronta a desabrochar em beleza... Em
completa e inerente suavidade.
Patrícia Germano – 04.02.2013
Às 17h11 - Aroeiras
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